RUTH CAROLINA RODRIGUES SGRIGNOLLI

Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada da TV Cultura.

WAETER VIEIRA CENEVIVA

Sócio do escritório Vieira Ceneviva Advogados. Especialista em Direito das Telecomunicações e Radiodifusão. Membro do Conselho de Comunicação Nacional (2012 a 2017). Professor convidado do Curso de Pós-graduação lato sensu de Direito do Entretenimento e da Comunicação da Escola Superior de Advocacia — ESA-SP.

*Artigo originalmente publicado na obra “Tecnologia, Políticas Públicas e Cidadania – Vol. I.

INTRODUÇÃO

A liberdade de expressão é a representação máxima da democracia, uma vez que garante às pessoas a liberdade de manifestarem seus pensamentos, vontades e opiniões. Garante aos cidadãos, que os meios pelos quais esses pensamentos e opiniões são veiculados são livres de qualquer interferência ou censura. Portanto, é a expressão de um Estado democrático de direito.

Da população total do planeta, dois bilhões e quatrocentas mil pessoas usam o Facebook. O Brasil tem 200 milhões de habitantes e 120 milhões deles são usuários da plataforma. Isso significa que um terço do planeta tem Facebook; 60% de brasileiros está na rede social.

Uma rede de comunicação que coloca tantas pessoas e, principalmente, tantos brasileiros em contato, que coloca tantas pessoas em contato com tanta informação, deve estar no topo da agenda de atenção.

O presente trabalho é o resultado de um projeto concebido pela Professora Michelle Asato Junqueira, como forma de trazer ao público um trabalho acadêmico de qualidade em que o leitor possa usar todos os recursos que a tecnologia dispõe para ler de forma interativa. Por isso, junto ao texto, segue um vídeo, uma entrevista em podcast e vários links de acesso ao que está sendo tratado.

Em nenhuma hipótese seria possível exaurir um tema tão complexo quanto ao que diz respeito à liberdade de expressão e intimidade em tempos de Facebook. Em realidade, o conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade são por si só um tema que requer estudo constante, pois não há unanimidade sobre o peso desses direitos. O problema se torna ainda mais complexo quando a tecnologia envolvida resulta em novas formas de se comunicar dentro de sites de relacionamentos, e no caso abordado por esse artigo, o Facebook.

Assim, além do interesse do tema pela atualidade que ele representa, compreender o que representa essa plataforma (ou esse meio) e suas resultantes deve fazer parte do dia a dia do cidadão, como ser crítico no exercício da cidadania e como sujeito de direitos e deveres.

  1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PRIVACIDADE E DIREITOS HUMANOS

A liberdade de expressão é garantida universalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948, mas já era prevista tanto na Declaração de direitos da Virgínia (1.776), documento de declaração da independência dos Estados Unidos, como ainda da

Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos (1.789), documento que resultou da Revolução Francesa.

No Brasil, o assunto é previsto no artigo 5º, IV, IX e 220 a 223 da Constituição Federal e interpretado pelo Supremo Tribunal Federal com cuidado e sensibilidade, considerando os anos de ditadura vividos.

O tema foi objeto da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental n° 130, que discutiu a constitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) e que resultou em marco legal da supremacia da liberdade de expressão como princípio norteador da democracia.

Como essa decisão, outras sucederam: a Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a restrição à publicação de biografias não autorizadas, nos termos do artigo 20 do Código Civil; a Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre o humor nas eleições, que tratou do direito de crítica no período eleitoral.

Em todas as ações, a liberdade de expressão foi privilegiada:

Erros corrigem-se segundo o direito, não se coartando liberdades conquistadas. A reparação de danos e o direito de resposta devem ser exercidos nos termos da lei. A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem. Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art. 5o, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias.

Mas às liberdades também há limites, pois como dizia Pontes de Miranda “as limitações à liberdade resultam da linha que separa o máximo de interesse da espécie e o grupo de atos em que o jogo individual se exerce.

Na mesma decisão, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.815-DF, a Ministra Relatora Cármen Lúcia, pondera:

Sejam como forem consideradas e conceituadas intimidade e privacidade, duas observações se impõem para os fins de interpretação das normas civis questionadas e sua compatibilidade com esses direitos constitucionalmente assegurados. A primeira refere- se à circunstância constitucional de se distinguirem intimidade e privacidade para os fins de definição do seu conteúdo na forma protegida no sistema jurídico fundamental brasileiro e de sua eficácia social. A segunda respeita à esfera de sua definição, que não é a mesma para todos, pois o maior ou menor resguardo de espaço indevassável da vida pessoal aos olhos dos outros altera se de acordo com a escolha feita pelo sujeito de direi Io a submeter-se a atividade que a) componha, ou não, os quadros de agentes das instituições estatais, sujeitas estas à transparência plena para ciência e controle dos cidadãos. Vem dos Antigos que aquele que não se quer expor ao público há de se manter nos umbrais da poria de casa, em cujo espaço, naquele período histórico, era sinônimo de segredo; b) promova as suas atividades em público e para o público, do qual extraia a sua condição profissional e pessoal, difíceis como são os lindes de uma e outra quando o nome, a profissão ou a função extraem do público o seu desempenho e do qual dependa o seu êxito. Quem busca a luz não há de exigir espaço intocado de sombra; ou c) extraia ou retire dos cidadãos, pelo exercício de sua função ou atividade, os ganhos materiais, profissionais ou de reconhecimento, com os quais se dá a viver, pelo que há de ser por eles conhecido.”. (…) “Ninguém se engane: o buraco da fechadura atrai. As vezes trata-se apenas de curiosidade malsã, outras, de vontade de saber o que há no quarto trancado. Segredo é comichão no olhar. As portas hoje não têm tranca, mas se selam mais as casas que antes. E há as câmeras que, a propósito de segurança, gravam, mostram c espalham-se cm redes que repercutem no mundo em questão de segundos o que se quer e o que não se deseja mostrar. O tempo é outro. Não adianta chorar. ‘Sorria, você está sendo filmado’.”

Portanto, conforme dito anteriormente, o tema não é pacífico e exige que cada caso seja tratado de forma única, considerando, mas considerando com cuidado, o interesse da democracia e os riscos que a falta, ausência ou supressão da informação podem representar.

  1. A SOLUÇÃO: A CORTE PLANETÁRIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Em 2019 o Facebook anunciou a criação do Oversight Board. Por determinação de seu fundador, a empresa avaliou e terminou por constituir um (Conselho de Supervisão, que vai cuidar do que pode — e do que não pode — ser dito na maior rede social.

A cada segundo, milhões de conteúdos são publicados no Facebook: fotos de batizados, eventos esportivos, eventos sociais, ‘selfies, junto com pronunciamentos oficiais de autoridades, notícias relevantes, tudo se mistura. É, importante, muita propaganda (publicidade).

A remuneração de muitos sites de acesso gratuito vem de propaganda e o Facebook não é diferente (como se vê de suas demonstrações financeiras). Mais de setenta bilhões de dólares (em torno de duzentos e oitenta bilhões de reais) projetados para 2019. Só de propaganda.

O insumo básico para venda de publicidade em redes sociais são os dados pessoais dos usuários da rede. Interessa aos clientes da rede (os anunciantes) conhecer as características de cada usuário, desde sua localização geográfica, seus hábitos de navegação, hábitos de consumo, orientação política, os quais permitem estabelecer um perfil de interesses do usuário, para que seja mais solidamente impactado pela publicidade. Portanto, o modelo de negócios do Facebook tem como insumo a privacidade de cada usuário; o direito humano foi mercantilizado, com as vantagens e desvantagens daí decorrentes.

Dentre os diversos conteúdos publicados no Facebook, há textos, imagens, vídeos, memes, gifs que em algumas situações, agridem a cultura, a lei e a moral de muitos cidadãos do mundo.

Crimes de ódio e preconceitos de raça, preconceitos religiosos, preconceitos de gênero, são muito frequentes nas redes sociais. Propaganda política de toda ordem também está presente, tanto de forma lícita, quanto de forma ilícita. Ademais há muita informação no Facebook: informação verdadeira e informação falsa. Homens públicos, frequentemente de má fé, chamam a estas de ‘fake news’ (adjetivo que hoje designa uma notícia de que não se gosta).

Essa circunstância tão grave, e tão importante, de que haja conteúdos que devam ser banidos do Facebook gera litígios no mundo todo, pois quem se sentiu ofendido por uma publicação quer removê-la c quem pública, quer mantê-la, com base na regra e no direito humano que assegura a liberdade de expressão.

O próprio Facebook tem políticas que orientam sua decisão quanto a cada caso concreto. Os tribunais de cada país também têm decidido a respeito de conteúdos publicados no Facebook. Mas o exercício da jurisdição, em cada Estado Nacional, pela autoridade local, é regularmente desprestigiado, pois o Facebook não dá conta da missão de cumprir milhões de ordens judiciais, mundo afora.

As razões pelas quais uma grande corporação, que tem a finalidade do lucro, escolhe descumprir e desrespeitar as autoridades de países do mundo deve ser objeto de preocupação. O ‘resto do mundo’ (palavras do Facebook ‘rest of the world’ deve entender e refletir sobre o tema.

Como se sabe, as corporações planetárias digitais como Google, facebook, Amazon, Apple (chamadas “G.A.F.A.”), junto com outras multinacionais, cada qual maior que um país isolado, não se submetem às regras de nenhum Estado Nacional, isoladamente considerado, salvo, às vezes, aos Estados Unidos, onde estão sediadas. A Europa, tão rica, chama esse poder excessivo de corporações transnacionais digitais de “o problema GAFA.

Quando corporações orientadas para o lucro são responsáveis pelo desacato sistemático das leis de diversos países, este desacato e o desrespeito as autoridades locais deve ser olhado em escala planetária, com a gravidade que esta violação contém.

Nenhuma corporação pode estar acima da Lei, em nenhum país. Cada empresa, grande ou pequena, deve se sujeitar às leis de cada país onde atua.

  1. RESPOSTA A UM ESCÂNDALO

A Cambridge Analytica é uma empresa de análise de dados, muito usada pura pesquisas e finalidades políticas. Antes das eleições presidenciais de 2016, nos Estados Unidos, a empresa teria comprado informações de uma empresa que possuía um aplicativo com informações de perfis de várias pessoas que haviam participado de uma pesquisa.

Na época, a Cambridge Analytica capturou do Facebook informações dos amigos das pessoas que responderam a pesquisa sobre seus gostos, seus hábitos e, principalmente, sobre seus perfis políticos.

Assim, a Cambridge Analytica teria acessado dados de mais de cinquenta milhões de pessoas que deveriam ser sigilosos e guardados pelo Facebook e que receberam propagandas políticas com a finalidade de tentar definir o candidato às eleições americanas. Foi uma grave violação da privacidade de milhões de usuários da rede social, com objetivos comerciais e de lucro, bem como para fins políticos.

Enquanto os poderes constituídos dos diversos países concebiam soluções para seus respectivos povos, o Facebook respondeu com sua inovadora possibilidade: o “Oversight Board”. Depois de abusos perpetrados, com ação do próprio Facebook, no caso Cambridge Analytica, a rede social anunciou a possibilidade de criar um tipo de tribunal para a própria rede que ele opera.

Parecia estranho que uma corporação, que tem finalidade de lucro, pudesse imaginar que um tribunal privado e subordinado aos seus acionistas poderia atribuir ou suprimir direitos dos habitantes do planeta.

O estranho da situação está no fato de que os países não estão submetidos a regras internacionais de uma corporação privada. Os cidadãos estão integrados em países. Os direitos são assegurados por autoridades, que têm a legitimidade que cada povo delega a tais autoridades.

Em novembro de 2018 Mark Zuckerberg escreveu sobre a maneira pela qual entendia que os conteúdos  no Facebook deveriam ser gerenciados, em escala mundial, e propôs o conceito de um órgão autônomo em relação ao Facebook.

A corporação que gerencia a rede social seguiu em seus trabalhos para anunciar que realizaria workshops mundo afora, para debater temas importantes sobre como constituir este Tribunal do Facebook, como assegurar a accountability do próprio tribunal, como monitorar os conteúdos do Facebook, como fazer cumprir as decisões deste tribunal privado. Preocupava, desde então, ao próprio Facebook encontrar um justo equilíbrio entre segurança e liberdade de expressão.

Naquele momento, o que se estabelecia era um compromisso ao qual o Facebook se submeteria. O que afirmava a empresa é que esta corte privada deveria atuar pelas pessoas que usam Facebook e não para o próprio Facebook.

A sequência de workshops teve início no fim de junho de 2019. Segundo diz, a rede social envolveu pouco mais de seiscentas e cinquenta pessoas e recebeu um mil e duzentas contribuições escritas sobre o Oversight Board. O relatório é disponível, com o resumo das recomendações da equipe da própria rede social. São parcas as reflexões sobre o conceito da liberdade de expressão do Facebook, mas a preocupação com ‘segurança’ é sempre acentuada.

Dentre as preocupações apresentadas nestas reuniões, algumas são gravíssimas, tais como (i) como evitar influência do próprio Facebook sobre os julgamentos desta corte? (ii) como evitar influência de governos ou terceiros sobre esta corte? (iii) Como a corte equacionaria conflitos entre liberdade de expressão, segurança, privacidade e igualdade? (iv) como definir os casos que deveriam chegar à apreciação desta corte planetária privada? (v) como a corte publicaria suas decisões? (vi) como poderia servir- se do apoio de especialistas sobre aspectos da cultura, da tecnologia e do funcionamento da moderação de conteúdos? (vii) como refletir nesta corte a diversidade e a pluralidade de usuários do Facebook em torno do planeta?

É interessante que não se encontram abertas na internet notícias sobre o ‘workshop’ que terá sido promovido em São Paulo, pelo Facebook: há zero informação pública sobre a workshop paulista. Mas o Promotor paulista, Dr. Ronaldo Porto Macedo Júnior, foi dispensado do serviço, pelo MPSP, para participar do workshop no México, o que parece incoerente.

Concluído o processo de discussão e análise, um “Oversight Board” foi aprovado pelo Facebook: a primeira corte planetária privada, concebida por auto — regulação está criada.

Para esta empreitada, o Facebook se serviu de qualificados estudiosos fias escolas de Direito de Stanford e Harvard. Não obstante os estudos apresentados, é imprescindível que se considere que o mundo não pensa como o americano médio. A cultura, a cultura jurídica, a moral são todas completamente diferentes no mundo, de tal maneira que o emprego de princípios e valores oriundos do sistema americano, para exportar tal sistema americano para os cidadãos de diversos países, é um desrespeito grave contra as demais culturas e contra a auto determinação dos povos, em locais onde há usuários do Facebook. Mas há nisso um pecado metodológico: o de universalizar valores regionais. A diversidade pretendida no projeto do ” Oversight Board” foi comprometida no nascedouro.

O tempo dirá se há apenas um problema metodológico ou uma ação concreta para disseminar valores de uma cultura específica.

Não se pode crer que o Estado de Direito é uma ferramenta imperialista, como sugerem MATTEI e NADER (2008), mas a universalidade dos valores e princípios defendidos pelo Facebook é inexistente.

  1. O ESTATUTO (OU ‘CHARTER’) DO CONSELHO

Em meados de setembro de 2019, começou o processo de seleção dos membros   do Conselho (ou Board como se tem tratado até aqui). Foram apresentados os requisitos de qualificação dos membros desse Conselho, considerando que os primeiros membros fossem ser indicados pelo próprio Facebook. No futuro, a proposta é a de que, para implementar o propósito da sua autonomia, os membros eleitos do Facebook elejam os seus sucessores, tendo em vista que os mandatos respectivos foram limitados a três anos (Art. 1, Sec. 3; Art. 1, Sec. 8).

A norma geral (chamada Charter, equivalente a um Estatuto) foi publicada em setembro. O Charter apresenta uma introdução, em que afirma que a liberdade de expressão, sendo um direito humano fundamental, pode conflitar com a veracidade, a segurança, a privacidade e a dignidade. Não é exagerado entender o que o pressuposto por trás da iniciativa de implantar o Board está ligada mais a restrição do que a garantia da liberdade de expressão. Para confirmar tal conclusão, observa- se que a Sec. 2, do Art. 2, coloca os direitos humanos abaixo (ou, ao lado) das políticas e valores da rede social.

O Conselho é subordinado às regras da empresa e não tem competência para expedir regras. O Facebook delegou a um tribunal de quarenta pessoas a competência para decidir os casos, mas à luz de caria de princípios que ele mesmo impôs. De novo, são quarenta humanos para decidir direitos de dois bilhões e meio de pessoas.

Quando se apresentarem para o Conselho temas ligados ao direito humano à comunicação, o direito humano à segurança, ou o direito humano à privacidade, deverá a corte privada decidir não segundo a Declaração Universal Dos Direitos Humanos, mas segundo as políticas do próprio Facebook. Sem prejuízo do tamanho e da importância dessa corporação para o planeta, esta limitação às fontes jurídicas a partir das quais o Board deverá julgar rebaixa o valor institucional do tribunal do Facebook. É evidente que a rede social não foi eleita por ninguém e não porta qualquer legitimidade para estabelecer padrões de liberdade de expressão, ou de segurança, ou de privacidade, ou de dignidade, ao planeta.

Apenas o próprio Facebook e seus usuários podem acionar o Conselho. Terceiros que não tenham se submetido às regras do Facebook são proibidos de acessar esta instância de justiça administrativa multinacional (Art. 2).

Além disso, o interessado, para poder levar seu caso ao Board, deverá ler exaurido todas as instâncias de apelo, dentro do próprio Facebook (Art. 2, Sec. 1).

O Conselho não é obrigado a apreciar todos os casos que lhe sejam apresentados. Terá o poder discricionário de escolher os casos sobre os quais queira se pronunciar, assim como aqueles sobre os quais nada dirá (Art. 2, Sec. 1).

A excludente de decisão em matéria regulatória também é equívoca. Reguladores, por exemplo, são o Federal Communication Commission (FCC) americano, a Autorité de régulation des Communications électroniques, des postes (Arcep) francesa, ou a Ofcom inglesa. Mas de qual regulação esta regra está falando?

Outras questões de rito e de organização estão previstas no documento.

Alinhado ao que tem sido recentemente decido pela União Européia, o Estatuto prevê que o Facebook deve aplicar as decisões a conteúdos idênticos (Art. 4). É pouco ainda, se se considerar o feito deletério da disseminação de ofensas e mentiras, com o baixo custo e alta velocidade da rede social. Importante ponderar que a empresa planetária tem meios (tecnologia c poderio econômico) para ser eficaz no combate a conteúdos ilícitos e não deveria esquivar-se de dever tão importante, sob alegações genéricas, como ‘tecnicamente e operacionalmente factível’.

Além do quanto já exposto, é importante destacar que o Charter emprega expressões que ensejam juízo subjetivos, como é frequente em documentos jurídicos americanos. Reasonably (que seja razoável), Timely (a bom tempo) são palavras gerais que comportam arbítrio na sua aplicação. Mas esta subjetividade é incompatível com os elevados direitos que o Charter diz querer proteger.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendida a dimensão e a relevância deste Conselho que vai exercer jurisdição sobre os usuários do Facebook de todo o mundo, e como até o momento, no Brasil, o assunto não foi abordado, seja pelas revistas, jornais, televisão ou mesmo pelo interessado Facebook?

Os problemas aqui expostos podem ser resumidos nos seguintes: (i) trata-se de uma companhia com fins de lucro, que pretende ser juíza da liberdade de expressão do planeta; (ii) trata-se de uma companhia que não obedece as decisões das autoridades locais de países de todo o mundo; (iii) trata-se de uma corporação que incorpora como ínsitos a todos os países os valores da cultura ocidental americana, mas que opera em países cuja cultura não apenas é diferente mas é totalmente conflitante com os modelos e padrões americanos; (iv) são regras que impõem padrões que vão influenciar eleições, religiões e culturas diferentes, mas que serão proferidas por pessoas sem legitimidade de qualquer espécie: sem votos, sem compromissos formais com seus jurisdicionados. E que proferirão suas decisões protegidos pelo anonimato.

Mais que tudo, o texto trata do exercício da liberdade de expressão, pilar fundamental das democracias, em todo o mundo. Trata ainda da privacidade, também um direito humano tutelado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A privacidade, esse direito humano fundamental, é o insumo da atividade mercantil da rede social e, na Introdução ao Estatuto do Oversight Board está o compromisso de protegê-la. Todavia, a nova Corte só cuidará do que pode (ou não pode) ser publicado, deixando de lado a violação mais grave no caso Cambridge Analytica, qual seja a da privacidade.

Admite-se que a realidade das corporações digitais mundiais é, como já dito, uma realidade irresistível e inarredável. Mas, não é possível aceitar o silêncio da comunidade jurídica, da comunidade política, da comunidade religiosa, da comunidade cultural, acerca da criação de uma suprema corte, que mandará mais do que o Poder Judiciário ou o Poder Legislativo de qualquer país.

Novamente, a questão que se coloca é: como quarenta pessoas do “Oversight Board”, escolhidas por uma corporação americana, oriunda e vinculada a um negócio típico da economia da atenção, poderão estabelecer padrões, cm escala planetária, num tema sensível como e a liberdade de expressão? Não poderão! Podem se tornar exportadores do soft power americano.

A solução para o arbítrio e contra o risco à liberdade e à privacidade, no entanto, será o espaço aberto para a comunicação e o debate, será a publicação e a divulgação das ideias, e para que elas não se percam, é preciso o exercício da cidadania de cada qual dos cidadãos usuários dos veículos de comunicação e eleitores da Nação.

*In: SMANIO, Gianpaolo Poggio e. BERTOLIN, Patricia Tuma Martins (orgs.). Tecnologia, Políticas Públicas e Cidadania – Vol. I. Londrina, PR: Thoth 2022, pp. 123-137.