Julgamento da Bonificação de Volume será passo importante para sedimentar regime jurídico da comunicação social

*Artigo originalmente publicado no Jota em 14 de fevereiro de 2021.

Como noticiou o JOTA, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) determinou que o Grupo Globo interrompa os pagamentos de Bonificação de Volume (BV) para as agências de publicidade, no que pareceu uma derrota da Globo e uma vitória do presidente da República, Jair Bolsonaro (decisão liminar em mandado de segurança reverteu a decisão do Cade).

O assunto é importante para qualquer cidadão, pois diz respeito ao financiamento do que nossos olhos e ouvidos vêm e ouvem, a cada dia, em cada momento de nosso cotidiano invadido pela comunicação social.

A Bonificação de Volume é uma forma de incentivo que os veículos de comunicação (rádios, jornais, revistas, sites de internet, televisões etc) pagam para as agências de publicidade, para que estas privilegiem, com mais dinheiro dos anunciantes, aos veículos que paguem mais BV para as agências.

Parece difícil de entender, já que a BV resulta de um arranjo imoral. Os anunciantes (desde cervejarias até os próprios governos) pagam às agências de publicidade, para que estas escolham os melhores veículos para exibir suas campanhas publicitárias.

Melhor veículo é o que tem maior audiência, mas dentro das especificações do interesse do anunciante (digamos, uma propaganda de cuecas, num programa masculino, e propaganda de lingeries, num programa feminino).

Para estimular as agências de publicidade, que são mandatárias dos anunciantes (Código Civil, arts. 653 a 692), os veículos de comunicação pagam um “incentivo”, para amarrar cada agência com os programas do veículo (e não com o interesse do anunciante).

Por isso, Johnny Saad, presidente do Grupo Bandeirantes declarou, em 2005, que a BV é o “mensalão da mídia, mas com nota fiscal”. No julgamento da Ação Penal 470, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Lei 12.232/10, que convalidou o pagamento de BV, foi duramente criticada, como pudemos indicar, em sessão do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional:

“A Lei 12.232 é um passo para a organização desse setor, no entanto recebeu do ministro Carlos Ayres Britto uma crítica – eu não vou ler tudo, eu vou pinçar palavras aqui. Ele diz no julgamento:

‘[…] [esse fato] me pareceu, mais do que esquisito, caricato – caricato naquele sentido tobiático, ou de Tobias Barreto, que o identificava com o baixo cômico – porque essa Lei nº 12.232 teve por autor do respectivo projeto o eminente jurista, publicista José Eduardo Cardozo, atual ministro da Justiça. Mais adiante ele diz que essa lei foi intencionalmente e maquinadamente redigida, nesse art. 20, sob medida para coonestar a situação destes de que estamos a falar.’

(…)

‘[…] permitam-me solicitar essa atenção – para o projeto originário da pena, da lavra do deputado, hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. [E conclui:] ‘[…] é um atentado veemente, desabrido, escancarado, ao artigo 5º, XXXVI, da Constituição […]. É um tranco – permitam-me a coloquialidade da palavra – à função legislativa do Estado.’

Isso está nas páginas 54.114 e 54.115 do Acórdão da Ação Penal 470.”

Para dar uma idéia da importância da BV, há investigações contra agências de publicidade, nos EUA, pelo FBI, sobre este tema.

No Brasil, o Cade atua sobre o assunto desde 1998 pelo menos. O processo recente, noticiado pelo JOTA (nº 08700.000529/2020-08) contém histórico do tema.

Neste processo, instaurado ‘ex officio’, o Cade apurou que o Grupo Globo tem poder significativo no mercado publicitário e que, nesta medida, ao pagar BV, termina por criar obstáculos ilegais à atividade de seus concorrentes.

Com base nessa apuração de fatos do mercado publicitário, o superintendente-geral do Cade impôs, e o Plenário do Cade ratificou (por maioria de votos), uma medida preventiva para proibir a Globo de pagar tal BV.

Por ser um tema técnico, no difícil campo do direito económico, a BV não costuma chamar atenção do grande público. Mas o leitor deve estar atento: é a publicidade que financia ao jornalismo e, se o jornalismo for financiado por práticas espúrias, no mercado publicitário, a pluralidade e a independência dos meios de comunicação estarão seriamente comprometidos.

No direito americano, há o conceito de “mercado de ideias”, um ambiente aberto, em que as ideias concorrem entre si, de que resulta que nós, o público, estamos melhor informados quanto maior for o número de fontes de informação disponíveis.

Se um grupo de comunicação aufere mais dinheiro do que outros, por práticas ilegais e não pela qualidade de seus programas ou conteúdos, então o público, a cidadania e a própria democracia estarão em riscoEsse impacto adverso das falhas de mercado é mais grave para o jornalismo do que para outros programas, como os esportes e as novelas, que são mais ao gosto do público e encontram patrocínios com maior facilidade.

Esse efeito deletério é amplamente analisado por Ruth Carolina Rodrigues Sgrignolli, em sua teseO Financiamento dos Meios de Comunicação no Brasil e os desafios à Liberdade de Expressão” (no prelo, Editora Libex).

No Brasil, a Constituição Federal só foi específica, em matéria de direito econômico, quanto a um setor: exatamente o setor de mídia (§ 5 º do artigo 220), para o qual estabelece o pluralismo e a proibição de monopólios e oligopólios.

Bem por isso, este processo administrativo perante o Cade assume importância especial, já que dará aplicação concreta, no tribunal da concorrência, para o comando da Constituição, no setor da comunicação social.

E não apenas o Cade vai se pronunciar, mas também o Poder Judiciário, pois o tema é objeto de mandado de segurança impetrado pelo Grupo Globo contra o próprio Cade, o qual tramita perante a Justiça Federal. Neste mandado de segurança, foi suspensa a decisão administrativa do Cade e o Grupo Globo segue exercendo seu direito de pagar a BV.

O tema comporta, entretanto, ponderada análise do leitor para aspectos especiais dos processos em curso:

a) Trata-se de liminar administrativa, suspensa por liminar judicial, ou seja, a prova dos fatos e a conclusão sobre o direito aplicável ainda são precárias, produto de juízos sumários;

b) O mercado publicitário sofreu profunda modificação em sua estrutura econômica, com o advento das chamadas ‘big techs’, as gigantes digitais que são tão grandes ou maiores do que o Grupo Globo, dentro do Brasil;

Ademais, a coincidência infeliz entre os ataques do presidente da República ao Grupo Globo e os processos aqui comentados não permite rebaixar a relevância da discussão sobre o funcionamento do mercado publicitário e da comunicação social.

As questiúnculas da política, que resultaram na expedição de Medidas Provisórias sem relevância e com puro espírito de emulação (sobre publicações de demonstrações financeiras e sobre direitos de arena por times mandantes de jogos de futebol) devem ser afastadas para garantir a autoridade e o exercício, no longo prazo, da jurisdição administrativa, pelo Cade, sob o crivo do Poder Judiciário.

O julgamento da BV, sob a ótica do direito econômico, será um passo importante para sedimentar o regime jurídico da comunicação social, sob o influxo das regras constitucionais de direito econômico.

Walter Vieira Ceneviva – Advogado especializado em mídia e telecomunicações.