*Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico, 21 de abril de 2020.

A Constituição protege a intimidade das pessoas em grau máximo: até a liberdade de expressão, pilar da democracia, cede passo à intimidade (Art. 220 e Art. 5º, X), pois o direito de estar só e de ter para si, exclusivamente, as próprias informações, antecede e se sobrepõe ao direito de trocar informações (de comunicar-se).

Quando o mundo digital era incipiente, a Lei nº 7.232/1984 (chamada Lei de Informática), antecipava a normatização de que os dados das pessoas devem ser juridicamente protegidos (Art. 2º). Depois da Constituição, em Julho de 1997, o Congresso Nacional aprovou a Lei Geral de Telecomunicações – LGT, que protege (Art. 72, Art. 3º, V e VI) os dados dos usuários de serviços de telecomunicações e, portanto, sua intimidade.

A proteção da intimidade foi muito debatida nos momentos que se seguiram ao escândalo revelado pelo Wikileaks: Dilma Roussef, Angela Merkel (Alemanha) e outras autoridades de diversos países foram criminosamente monitoradas pela NSA americana. Em decorrência disso, o Congresso Nacional aprovou o Marco Civil da Internet.

Na Europa, adveio a General Data Protection Regulation (GDPR), com sólidas proteções para os dados individuais dos cidadãos. Com o escândalo contra o Facebook, por suas atividades com a Cambridge Analytica, a preocupação planetária sobre a proteção cresceu e, no Brasil, foi adotada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

É uma trajetória de bonita evolução do direito brasileiro, consolidada com a Constituição cidadã, no sentido de proteger a intimidade dos cidadãos.

A jurisprudência seguiu tutelando a intimidade, em atenta observância à regra constitucional. É emblemático o debate ocorrido no TRF-4, sobre a entrega de cadastro dos usuários de prestadoras de serviço de telefonia fixa e móvel para o Ministério Público (Estadual e Federal) e às Polícias Civil e Militar, decidido por voto de desempate, em 13/09/2012, assim ementado:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CADASTRO DE TELEFONIA MÓVEL. INFORMAÇÕES SOLICITADAS PELO MPF, MPE E POLÍCIAS. SIGILO. ART. 5º, X A XIII, DA CF/88. 1. Os dados cadastrais dos usuários das operadoras estão protegidos pela garantia do sigilo, nos termos dos artigos 5.º, X a XIII, da CF/88 e 3.º, VI e IX, da Lei n.º 9.472/97, sigilo esse que somente pode ser quebrado mediante intervenção judicial, nas hipóteses cabíveis. A entrega dos cadastros de todos os usuários dos apelantes aos solicitantes implicará a quebra do sigilo. 2. Embargos infringentes a que se nega provimento.” (Embargos Infringentes nº 0033295-12.2006.404.7100/RS, 2ª Seção, Relator Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, não modificado pelo STJ, nem pelo STF)

Com o advento da Lei nº 12.850/2013, lei do combate às organizações criminosas, o Congresso nacional franqueou ao delegado de polícia e ao Ministério Público o acesso, independentemente de autorização judicial, aos dados cadastrais do investigado (qualificação pessoal, filiação e endereço), impondo o dever de manter, por 5 anos, os registros de chamadas (números de origem e de destino das ligações telefônicas). Pende de julgamento no STF a ADI 5063, que questiona a constitucionalidade de tal flexibilização da garantia constitucional por esta Lei.

No campo dos negócios, estabeleceu-se uma indústria (ligada à chamada ‘economia da atenção’) que trabalha o petróleo do século XXI, nossos dados pessoais. A Federal Trade Comission americana contém ampla análise desse mercado de dados pessoais, no relatório “Cross-device tracking”.

Entretanto, normas recentes e erráticas vieram, em pouco tempo e com poucas palavras, comprometer não apenas o ambiente de fato, como também o ambiente jurídico que cerca os dados pessoais dos brasileiros. Vejamos.

Em 02 de abril, o MCTIC anunciou que recebera os dados de localização dos usuários de telefones, mediante acordo com as respectivas operadoras, para auxiliar no combate aos efeitos da pandemia do Covid 19.

No dia seguinte, a Anatel entregou ao IBGE a sua base de dados com nossas informações pessoais (nome, endereço e telefone), afirmando cumprir a LGPD, para auxiliar no trabalho censitário do IBGE.

Seguiu – se uma polêmica política (não jurídica) acerca do tema e MCTIC voltou atrás, anunciando que refletiria melhor sobre as ponderações jurídicas do Presidente da República.

Mas a Anatel já entregara os dados ao IBGE e as pessoas já vinham recebendo as ligações do Instituto. Também os dados de localização já haviam sido entregues pelas operadoras de telefonia ao MCTIC.

Então foi preciso higienizar, legalmente, a confusão ocorrida. Para tanto, o Presidente da República publicou a Medida Provisória 954, que obrigou as empresas de telefonia a entregar o nome, o endereço e telefone de todos os seus usuários ao IBGE.

Em tempos digitais, uma vez entregue esta base, seu sigilo (decorrente da Constituição, da LGT, do Marco civil da Internet e da LGPD) foi violado. Se se toma em conta a fragilidade das barreiras de confidencialidade no ambiente digital, logo veremos criminosos comercializando tais bases de dados.

A MP é iniciativa para regularizar a iniciativa da Anatel. Todavia, a iniciativa do MCTIC (secundada por governos estaduais) ainda segue ilegal e pode gerar responsabilizações de seus autores.

A sociedade deve estar atenta para evitar que o medo da pandemia e as tertúlias políticas terminem por esvaziar, na prática, as conquistas brasileiras em matéria de privacidade.

Walter Vieira Ceneviva é advogado e professor convidado da Escola Superior da Advocacia da OAB-SP. Foi membro do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.