Análise sobre a inovadora corte planetária privada: o ‘Facebook Oversight Board’ 

*Artigo originalmente publicado no Jota em 02 de maio de 2020.

O JOTA tem repercutido e debatido1 2 a criação de inovadora corte planetária privada: o ‘Facebook Oversight Board’. A importância do tema se expressa pelos números da empresa americana: 2,4 bilhões de pessoas como clientes, dentre os quais 120 milhões de brasileiros (60% de nossa população). A importância sobressai, quando o Facebook se propõe a separar verdade e mentira, como fez ao bloquear ‘posts’ do presidente brasileiro. Isso é censura, como pude afirmar ao Jota, embora as ações do presidente fossem um grave equívoco.

O modelo de negócios da rede social estimula nossa atenção, para vendê-la a seus anunciantes (a receita do Facebook advém de propaganda, como se vê de suas demonstrações financeiras: 69,6 bilhões de dólares, R$ 350 bilhões, em 2019). Trata-se de corporação com finalidade lucrativa que comercializa a nossa atenção3. A empresa estimula nossas manifestações, para que estejamos sempre atentos, sempre ligados na sua rede.

Para acomodar os conflitos que a livre expressão de seus clientes terminam por gerar, o Facebook tem políticas que orientam sua decisão, em cada caso concreto. Os tribunais de cada país também têm decidido a respeito de conteúdos publicados no Facebook e sobre quando e como bloquear tais conteúdos4.

Depois de abusos perpetrados, com envolvimento do próprio Facebook, no que veio a ser chamado de caso Cambridge Analytica, Mark Zuckerberg escreveu sobre a maneira pela qual entendia que os conteúdos no Facebook deveriam ser gerenciados, em escala mundial, e propôs o conceito de um órgão autônomo em relação ao próprio Facebook.

A corporação realizou ‘workshops’ mundo afora, para debater temas importantes como a forma jurídica deste ‘Tribunal do Facebook’, meios para assegurar a ‘accountability’ do próprio tribunal, formas de monitorar os conteúdos do Facebook, mecanismos para cumprir as decisões deste tribunal privado. Preocupava, desde então, ao próprio Facebook, encontrar um justo equilíbrio entre segurança e liberdade de expressão.

A sequência de ‘workshops’ teve início no fim de junho de 2019. Segundo diz a rede social envolveu pouco mais de 650 pessoas e recebeu 1200 contribuições escritas sobre o “Oversight Board”. O relatório é público, com o resumo das recomendações da equipe da própria rede social. São parcas as reflexões sobre o conceito da liberdade de expressão do Facebook, mas a preocupação com ‘segurança’ é sempre acentuada.5

É interessante que não se encontram abertas na internet notícias sobre o ‘workshop’ que terá sido promovido em São Paulo, pelo Facebook: há zero informação pública sobre a workshop paulista. Mas o Promotor paulista, Dr. Ronaldo Porto Macedo Júnior, foi dispensado do serviço, pelo MPSP, para participar do workshop no México6, o que parece incoerente.

Para amparar a formatação do “Oversight Board”, o Facebook se serviu de qualificados estudiosos das escolas de Direito de Stanford e Harvard7, o que pode se constituir num pecado metodológico, pois sendo a rede social um empreendimento planetário, outras visões, para além da americana, deveriam ser contempladas. A diversidade pretendida no projeto do “Oversight Board” foi comprometida no nascedouro.

Começou, em setembro de 2019, o processo de seleção dos ‘juízes’ desta corte planetária. Foram apresentados os requisitos de qualificação de seus membros, cabendo ao próprio Facebook indicar os primeiros integrantes.

A norma geral (chamada “Charter, equivalente a um Estatuto) foi publicada também em setembro. Em sua introdução, se propõe que a liberdade de expressão, sendo um direito humano fundamental, pode conflitar com a veracidade, a segurança, a privacidade e a dignidade. Não é exagerado entender o que o pressuposto por trás da iniciativa de implantar o Board está ligada mais à restrição do que à garantia da liberdade de expressão. Para confirmar tal conclusão, observa-se que a Sec. 2, do Art. 2, do Estatuto, coloca os direitos humanos abaixo (ou, no melhor caso, ao lado) das políticas e valores da própria rede social.

O número de membros desta corte é flexível e será de, no mínimo 11 membros, até o máximo de 40 pessoas, ao fim do processo de consultas e concepção do “Oversight Board” (Art. 1, Sec 1), com diversidade entre os integrantes. No futuro, seus próprios membros elegerão seus sucessores, tendo em vista que os mandatos respectivos foram limitados a três anos (Art. 1, Sec. 3; Art. 1, Sec . 8).

A estrutura em torno do ‘Board’ contempla, além do próprio Facebook e suas Políticas de conteúdo (Art. 4), um ‘trust’ (Art. 5, Sec. 2) nomeado pelo Facebook, o qual cuidará da implementação do Conselho.

Serão jurisdicionados pelo Conselho o próprio Facebook, assim como as pessoas registradas para usar seus serviços (incluindo Facebook, Instagram, Messenger etc.). Isso significa que quem não é cliente da rede social não pode recorrer ao tribunal, mesmo que atingido pela inserção, ou remoção de certo conteúdo (cf. Introduction e Art. 2).

Os membros do Board devem atender a critérios de neutralidade, julgamento independente e imparcialidade, ao proferir suas decisões (Art. 1). Poderão ser demitidos se violarem o Código de Conduta (Art. 1, Sec. 8), que será aprovado pelo próprio Board (ver as ‘Legal Agreements and Definitions’ do Estatuto). Os mesmos julgadores deverão se qualificar por uma ampla gama de conhecimentos e competências (mentes abertas, capacidade de cooperar em equipe para proferir decisões refletidas; capacidade de explicar suas decisões, sempre baseados em parâmetros pré-estabelecidos; familiaridade com o conteúdo digital, governança, livre expressão de manifestações da sociedade civil, segurança, privacidade e tecnologia (Art. 1, Sec. 2).

O prazo do mandato é de 3 anos para cada membro julgador e pode ser renovado, até o limite de 3 mandatos; ou seja, um membro julgador pode atuar 9 anos no tribunal do Facebook (Art. 1, Sec. 3).

O Board é competente para (Art. 1, Sec. 4) requisitar informação do Facebook, para suas deliberações; interpretar os padrões comunitários do Facebook, a partir das políticas do próprio Facebook; instruir o Facebook para permitir, ou remover conteúdos; instruir o Facebook para manter, ou modificar uma determinação do próprio Facebook; expedir imediata explicação escrita sobre as decisões do Conselho.

Os membros julgadores serão remunerados, conforme estabelecido pelo ‘trust’ (Art. 1, Sec. 5). Não há notícia dos padrões que serão adotados, mas é certo que os membros julgadores deverão assinar contratos para reger suas relações com o Facebook (Art. 1, Sec. 6), o que diminui a relevância da missão dos julgadores para o tamanho de reles compromissos contratuais. O Board terá um grupo de co-julgadores, os quais apoiarão o trabalho dos membros julgadores (Art. 1, Sec. 7). Terá também uma estrutura de assessores (o Staff, cf. Art. 3, Sec. 1).

Um caso só será levado ao Board depois de exauridas todas as instâncias de apelo, dentro do próprio Facebook (Art. 2, Sec. 1). O Board não é obrigado a apreciar todos os casos que lhe sejam apresentados. Terá o poder discricionário de escolher os casos sobre os quais queira se pronunciar, assim como aqueles sobre os quais nada dirá (Art. 2, Sec. 1), mas o Facebook poderá encaminhar diretamente ao Board casos especiais, com consequências urgentes no mundo real, os quais deverão ser julgados com urgência (Art. 3, Sec. 7). As partes interessadas terão oportunidade de manifestação, antes do pronunciamento final do Board (Art. 3, Sec. 3), podendo o Board demandar pareceres de experts, ou serviços de pesquisa para lastrear sua análise.

O Board não poderá tomar decisões nos casos de que possa resultar responsabilidade criminal ou regulatória (Art. 2, Sec. 1; Art. 4).

Os fundamentos das decisões, opiniões e recomendações da corte privada devem ser consistentes com as políticas e valores da própria rede social (Art. 2, Sec. 2). O Estatuto adota os precedentes do próprio “Board” como referência para decisões futuras do Conselho. Mas os ‘painéis’ (conjunto de alguns de seus membros), serão necessariamente secretos, o que impede aferir eventual conflito de interesse do julgador (cf. Art. 1) sobre determinado tema.

Embora o Board possa fazer recomendações sobre políticas, a pedido do próprio Facebook, como está no item 7.2, do Art. 3 do Estatuto, estas recomendações são meramente recomendações e não precisam ser acatadas pelo Facebook (Art. 5, Sec. 3; Art. 3, Sec. 7.3). Essa diminuição da autoridade do “Oversight Board” talvez seja reveladora de sua estatura de mero departamento de convalidação de ordens corporativas empresariais. As decisões poderão propor soluções técnicas (por exemplo, inserção de telas de advertência, ou bloqueios por geografia, numa dada região ou país) (Art. 3, Sec. 5). Alinhado ao que tem sido recentemente decido pela União Européia8, o Estatuto prevê que o Facebook deve aplicar as decisões a conteúdos idênticos (Art. 4).

Embora o Estatuto prefira decisões unânimes, quando a unanimidade não for possível, as razões da discordância de um, ou alguns membros julgadores, deverão estar explicitadas na decisão (Art. 3, Sec. 4).

As modificações do Charter (Art. 6) requererão aprovação da maioria dos membros julgadores, somada à concordância do próprio Facebook.

Para que uma boa ideia não se perca, é importante que cada qual de nós, profissionais do direito ou não, nos envolvamos com esse debate.

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1 A Suprema Corte do Facebook e o Direito Constitucional para além do Estado, por JOÃO VICTOR ARCHEGAS, em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suprema-corte-do-facebook-e-o-direito-constitucional-para-alem-do-estado-07082019 , acesso em 06/04/2020.

2 Um tribunal global para a Internet?, por FABRÍCIO BERTINI PASQUOT POLIDO, em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-tribunal-global-para-a-internet-04092019, acesso em 06/04/2020.

3 Dentre tantas, uma referência sobre a economia da atenção em “The ‘Economics of Attention’: A History of Economic Thought Perspective”, por Agnès Festré e Pierre Garrouste, 5/1/2015, disponível em https://journals.openedition.org/oeconomia/1139, acesso em 06/04/2020.

4 As discussões sobre a possibilidade de autoridades judiciais brasileiras terem jurisdição para interrupções do aplicativo Whatsapp (que pertence ao Facebook) é um exemplo disto; ver em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=345677 , acesso em 06/04/2020.

5 “Segurança” foi definida pela rede social como “(…) o compromisso de fazer com que o Facebook seja um lugar seguro. Manifestações contendo ameaças podem intimidar, excluir ou silenciar pessoas, e não isso não é permitido no Facebook.” (aplicável ao “Oversight Board”, cf. a nota 241 do Global Feedback & Input on the Facebook “Oversight Board” for Content Decisions”),

6 Protocolo 31.522/2019 – MPSP, DOE de 14 de maio de 2019, 129 (90), Poder Executivo – Seção I.

7 Mark Zuckerberg entrevista Jenny Martinez (Dean da Stanford Law School) e Noah Feldman (professor na escola de direito de Harvard) sobre os parâmetros usados e soluções para os desafios encontrados: https://www.facebook.com/zuck/videos/10107820049450011/?t=0 , acesso em 06/04/2020.

8 Ver o caso Eva Glawischnig-Piesczek v Facebook Ireland Limited, Case C-18/18, julgado em 03 de Outubro de 2019, informações disponíveis em https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2019-10/cp190128en.pdf, acesso em 25/01/2020.

Walter Vieira Ceneviva – Advogado.